12 Fevereiro 2021
“É preciso sofrer e oferecê-lo. É a vida. Deus está mais além de tudo. Minha vida é estar com Deus. Precisamos ver Deus em tudo”, recorda Pedro Miguel Lamet, jesuíta espanhol, da sua última conversa com Pedro Arrupe, em artigo pelos 30 anos da morte do ex-superior geral jesuíta, publicado em Religión Digital, 05-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Hoje cumprem-se trinta anos da morte de Arrupe. Se foi deste mundo precisamente em 05 de fevereiro, aniversário dos mártires de Nagasaki, do seu querido Japão. Quando o visitei em Roma, já afetado pela trombose, para entrevistá-lo por sua biografia, vivia da fé em meio à marginalização e desautorização da Santa Sé.
Pedro Arrupe com Pedro Miguel Lamet. Foto: Religión Digital
Jamais esquecerei a santidade de seu rosto ladeado e sua aceitação da dor – com o rosário em mãos. Ao reler seus apontamentos de Villa Cavalleti, quando se preparava para ser superior geral da Companhia, comprovei que estava vivendo o que havia intuído, a solidão com Jesus Cristo: “Esse amo pessoal tem um caráter de exclusividade ou de unicidade muito importante – escrevia. Ao fim e ao cabo, o único que permanece é Jesus Cristo. O resto da colaboração, estima pessoal e até amor sincero, fica como algo contingente, limitado, temporal, variável. O único que sempre permanece e em todo ludar, que me orienta e ajuda sempre, ainda nas circunstâncias mais difíceis e nas incompreensões mais dolorosas, é sempre o amor do único amigo, que é Jesus Cristo. Isso não tirar nada às demais amizades, às relações verdadeiramente caritativas, de uma sinceridade e valor por parte dos seres humanos. A vida é assim, os homens são assim, e as dificuldades pessoas subjetivas são tais, que somente pode contar sempre e em todas as circunstâncias com Jesus Cristo. O geral é o chefe, porém é cabeça e pai. É governante e administrador, daí a amabilidade, carinho, simplicidade de pai, a clareza, determinação, firmeza..., compreensão, amabilidade humanas, carinho e amor”.
Pedro Arrupe. Foto: Religión Digital
Nestes tempos de revolta e insegurança, a figura de Pedro Arrupe cresce a cada dia, como testemunha e profeta. Não posso esquecer os vinte dias que passei ao seu lado no verão de 1983, depois da trombose que em 1981 o enclausurara entre as quatro paredes brancas de seu quarto de enfermaria. Seu relógio parou novamente, como 6 de agosto de 1945, o dia fatídico da bomba atômica de Hiroshima. Desde então, ele se situou entre o tempo e a eternidade. Ele era um homem que tinha visto claramente, um homem de fé liberado de dentro.
Na vida de Pedro, nascido em Bilbao em 14 de novembro de 1907, há uma série de kairoi (momentos de salvação), que se projetam em uma magnífica personalidade apaixonada. Durante a infância foram a perda de seus pais, o contato com a injustiça em Madrid, de seus estudos de medicina e a viagem a Lourdes. Quando decide ser jesuíta, a supressão da Companhia na República e seu desterro na Bélgica o catapultam a cidadão do mundo, um coração universal, que o converterá em profeta da globalização.
Pedro Arrupe com João Paulo II. Foto: Religión Digital
Japão, suas experiências de cárcere, a bomba atômica, seu contato com a cultura nipônica (enculturação) e seu espírito incansável de homem de diálogo formaram o novo superior geral da Companhia de Jesus (1962), em pleno Concílio Vaticano II, um espírito ousado, rompante, criativo, que de alguma maneira relê Inácio de Loyola para o mundo de hoje.
Suas ideias contra o racismo, sua reforma do ideário educativo, sua luta contra a injustiça social e o ateísmo, sua abertura, o converteram, sem pretender, em um personagem conflitivo. Porém, era um homem santo, que havia feito um voto extra de perfeição, apaixonado por Jesus de Nazaré até o extremo de chegar a escolher a alguns de seus “inimigos” para cargos de responsabilidade, que acabariam traindo-o.
Pedro Arrupe. Foto: Religión Digital
A comparação das teologias de Arrupe e João Paulo II clareia para se compreender a falta de comunicação de dois homens de Deus, que conduzirá Pedro à kénosis, o esvaziamento interior de nove anos de doença, vividos de forma heroica. Resgatei o diário de seu enfermeiro, o irmão Bandera, que demonstra o dia-a-dia desta aceitação da vontade de Deus em meio à noite escura. Otimista, simples, simpático, magnético, valente e dedicado, adiantou-se em temas que hoje se aceitam como irrenunciáveis. Sua vida e sua mensagem se resume em suas últimas palavras, um programa atual para todos: “Para o presente amém, para o futuro aleluia”.
Mas aproveito a última entrevista com aquele Arrupe ferido e apenas para sublinhar o último segredo de sua vida como testemunha e profeta, ao fechar os olhos e lhe custar caro, ele me disse: “Você tem que sofrer e oferecer isso. É a vida. Deus está além de tudo. Minha vida é estar com Deus. Temos que ver Deus em tudo. Eu não entendo isso. Mas deve ser de Deus, da sua Providência... É algo muito especial. Para mim muito bem. Mas e a empresa? Tem que ser com Deus. De vez em quando sinto uma força muito especial”. Pega no rosário e acrescenta: “Disto, muito, muito, muito. Para mim nada, nada, nada (ele diz com muita força). Deus Trino, depois o Coração do Senhor e este pobre homem. O Senhor que me dá sua luz. Eu quero dar tudo ao Senhor. Tudo é muito difícil. É o que Deus permite. Algo muito especial que nos enviou muito rapidamente. Bendito seja Ele, bem-aventurados os homens” (ele usou este termo, “homens”, para se referir aos Jesuítas).
Velório de Pedro Arrupe. Foto: Religión Digital
Não esquecerei aquela bênção segurando a mão direita com a esquerda. Eu beijo sua mão e ele beija a minha. Ao sair, não pude conter as lágrimas. Na abertura da Congregação Geral, São João Paulo II cumprimentou três vezes o padre Arrupe. Vale a pena ler a mensagem de adeus em sua demissão. Ele foi transfigurado na oração e na missa como se não estivesse neste mundo.
Ele tinha, como me confessou, quatro iluminações ou ilustrações em sua vida, para as quais viu tudo claro:
Em Oña, quando ouviu uma voz que dizia: “Você será o primeiro”.
Em Cleveland, durante a terceira provação. Data possível de seu voto de perfeição: “Um novo mundo começou para mim”.
Em Hiroshima, quando o relógio parou após a explosão da bomba atômica.
Na tomada de decisões de especial importância: a opção pela justiça como consequência da fé. “Eu vi isso claramente diante de Deus. Nós, jesuítas, tivemos que dar esse passo. Foi algo precioso, muito bonito” (disse com o rosto transportado).
Ele tinha conhecimento extra-sensorial das pessoas. Quase todos os jesuítas se sentiram percebidos e compreendidos antes de lhes contar qualquer coisa.
Ela tinha o dom da profecia por estar à frente de seu tempo em questões que agora são fenômenos dominantes, especialmente imigração, novas formas de escravidão, refugiados, involução europeia, o papel da mulher na Igreja, aldeia global, inculturação, diálogo inter-religioso etc.
Mas viveu tudo com uma naturalidade enorme, sem se dar a menor importância. Felizmente, embora entre os jesuítas sempre tenha sido considerado um santo, parece que finalmente se aproxima a hora do seu reconhecimento oficial.
“Eu acredito que o lema do Jesuíta hoje é ‘Amém e Aleluia’. Amém, porque a vida dele é fazer a vontade de Deus e Aleluia, porque isso o deixa feliz”.
“Sou um homem pobre que tenta estragar a obra de Deus o mínimo possível”.
“Senhor: gostaria de te conhecer como tu és. Sua imagem de mim será o suficiente para me mudar”.
“Para mim Deus é tudo. É o que preenche completamente a minha vida e que me aparece na fisionomia de Jesus Cristo, no Jesus Cristo escondido na Eucaristia, e mais tarde nos meus irmãos, que são a imagem de Deus”.
“O Senhor talvez nunca tenha estado tão perto de nós; já que nunca fomos tão inseguros”.
“Há alguns que morrem de fome e outros por colesterol em excesso. A fome é filha natural da injustiça, uma injustiça que os países ricos podem evitar. Mas vamos dizer com clareza: eles não querem”.
“Para o presente amém, para o futuro aleluia”.
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O último segredo de Pedro Arrupe. Relatos de Pedro Miguel Lamet, s.j. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU